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Forças para lutar

  • praticajornalistic
  • 6 de jun. de 2023
  • 10 min de leitura

Atualizado: 13 de jun. de 2023

A violência contra a mulher praticada por parceiros ou ex-parceiros ainda é

uma realidade enfrentada por milhares de brasileiras. Ações de acolhimento de

vítimas e agressores são fundamentais para frear o aumento de ocorrências


Por Ana Paula Lima

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Muitas mulheres ainda não fazem ideia de como um relacionamento abusivo pode lhes causar

transtornos e danos para o resto da vida. Muitas das vezes elas sequer compreendem que a

violência está presente por meio de pequenos gestos. Crédito: Pixabay Tumisu



Os dados de violência contra a mulher por parceiro íntimo são preocupantes no mundo todo, porém no Brasil são ainda mais assustadores. Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgada em 2023, a estimativa global indica que 27% das mulheres, com idade entre 15 e 49 anos, sofreram violências física ou sexual provocada por parceiro ou ex-parceiro íntimo. Enquanto, no Brasil, esse número chega a 33,4%, entre mulheres de 16 anos ou mais.


É importante destacar que a violência sofrida pelas mulheres não é apenas de forma física, mas também psicológica, moral, sexual e/ou patrimonial. Além de saber os tipos de violência, é necessário compreender que nenhuma delas é menos nociva: todas são danosas e podem gerar traumas por toda vida.

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Dados: Instituto Maria da Penha. Arte: Ana Paula Lima


Dentre os números de mulheres vítimas de agressão por parceiro íntimo, segundo o levantamento do FBSP, 24,5% delas afirmaram ter sofrido agressões de forma física, como tapa, batida e chute, e 21,1% foram forçadas a praticar relações sexuais contra a sua vontade. Se expandidos os resultados para as mulheres que afirmaram ter sido vítimas de violência psicológica, como xingamentos e insultos, o percentual chega a 43%.

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Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Datafolha.

Pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, edição 4, 2023.

Violence Against Women Prevalence Estimates, OMS, 2022. Arte: Ana Paula Lima.




A face das vítimas


Angel (nome fictício), 26 anos, mora na capital paulista. Seu primeiro relacionamento, aos 16 anos, foi traumático. “A gente se conheceu porque ele era uma pessoa bem popular na cidade e nós começamos a frequentar os mesmos lugares. Desde o começo, ele já se mostrou ser uma pessoa ciumenta, exigia que eu fosse vê-lo e me proibia de sair com as minhas amigas. Ele descobria onde eu estava e ia me buscar. Por ser muito nova e ter pouco conhecimento da vida eu ia e acabava cedendo”, relata.


Segundo Angel, primeiro vieram as chantagens emocionais. “Com o tempo ele foi me afastando da minha família. (Certa vez) quando minha mãe saiu do hospital, ele não me permitiu ficar com ela. Me acusava de ir para a casa dela para me encontrar com outro homem. Não pude nem mesmo ir à minha formatura do ensino médio, porque ele me proibiu”, conta. O comportamento do namorando foi piorando até chegar a agressões físicas. “A primeira agressão foi depois que a gente saiu de um churrasco na casa da minha prima, ele começou a brigar comigo e acabou me dando um tapa na cara na frente de todo mundo. Ele ainda me ameaçou dizendo que se eu descesse do carro ele iria me bater ainda mais. E eu acabei indo embora com ele”, recorda-se a jovem. Além das violências psicológica e física ela ainda destaca como sofria violência sexual do ex-companheiro. “Ele me obrigava a transar sem camisinha e ainda ejaculava dentro mesmo sem eu permitir. Através disso me passou HPV, porque ele me traía. Eu era virgem quando comecei a namorar com ele e hoje eu entendo que aquilo era violência”, constata.


Angel relata que mesmo após uma medida protetiva ainda reatou o relacionamento e, somente depois de um tempo, teve forças para se separar do agressor depois de três anos de relacionamento, aos 19 anos. “Minha mãe ficou doente novamente e eu precisei acompanhá-la para fazer outra cirurgia, ele falava que eu estava indo para o hospital para transar com os médicos. Eu parei para pensar e decidi colocar um ponto final. Pensei em quantas vezes ela precisou de mim e eu não estava lá, e como ele me afastou das pessoas, eu havia me afastado de todos os amigos. Quando minha mãe saiu do hospital eu fui para a casa dela e avisei que não voltaria mais e que só buscaria minhas coisas. Mesmo assim ele ainda me procurava e só parou mesmo quando eu vim passar um tempo em São Paulo, em 2016. Eu nunca mais quis ver ou saber dele, graças a Deus”, desabafa aliviada.


Combate à violência


Ainda existe um longo caminho a percorrer em direção ao combate à violência contra a mulher. A conscientização sobre o assunto, aliada a políticas públicas que ofereçam segurança e apoio às vítimas de violência, podem ser a base para que a crescente dos números seja freada. Essas ações podem e devem ser consideradas, já que muitas mulheres ainda desconhecem os tipos e as diversas formas com que a violência pode ser praticada por seus parceiros e/ou ex-parceiros e muitas não possuem condições ou apoio para se reerguer, após se tornarem vítimas de seus agressores.


Pensando em cuidar das vítimas de violência doméstica, muitos municípios brasileiros vêm desenvolvendo programas que possam acolher, cuidar e apoiar mulheres vítimas de violência doméstica. Um exemplo de órgão criado para atuar no acolhimento dessas mulheres é o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM), em Frutal (MG).


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Sede do Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Frutal). Crédito: Ana Paula Lima.



“O CRAM foi inaugurado no dia 15 de dezembro de 2022, é um órgão novo, que faz parte da secretaria de assistência social, então é um órgão do município de Frutal, mas também atendemos as mulheres da redondeza e nos pequenos povoados. Nós recebemos (as vítimas) por meio dos boletins de ocorrência e medidas protetivas que são lavradas em relação a violência doméstica. O atendimento é voluntário e não obrigatório. A mulher pode vir até aqui da forma que preferir e mesmo que informe que não fez a ocorrência, atendemos do mesmo jeito. Se ela informar ainda que sofre violência doméstica e não quer contar para ninguém, sem problemas, atendemos do mesmo jeito”, explica a coordenadora.


Laís detalha quais são os atendimentos disponibilizados a essas vítimas: “Nosso propósito é disseminar para a maior parte das mulheres, para que elas entendam como é um relacionamento abusivo, tóxico e como são as violências que podem ser praticadas dentro desse relacionamento. Aqui oferecemos o acolhimento psicológico, orientação social e judicial. Nosso trabalho é em conjunto, mas ofertamos atendimento nessas três vertentes para auxiliar essas mulheres”.

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Profissionais do Núcleo de atendimento do Centro de Referência

de Atendimento à Mulher (Frutal). Crédito: Ana Paula Lima.



A psicóloga Milena Bertoco faz parte da equipe do CRAM e conta como é o atendimento prestado às vítimas quando elas procuram por ajuda no órgão. “Aqui não é bem um atendimento psicológico, mas sim o acolhimento em si. Acolhemos a demanda da vítima, o sofrimento em si, o que ela traz, a sua história, avaliamos os riscos e a partir daí nós vemos o encaminhamento para um atendimento fixo em uma Unidade Básica de Saúde ou até mesmo no particular, caso a pessoa tenha uma condição financeira. E a partir daí tentamos manter o mais estável possível, fazendo o encaminhamento caso precise para um psiquiatra, porque a gente sabe que essas situações causam ansiedade, depressão, e necessitam de um acompanhamento adequado”, relata.


Milena ainda ressalta a procura das mulheres por ajuda somente após as agressões físicas, gerando um quadro maior de danos nessas vítimas. “Elas procuram mais por atendimento depois de terem passado por todos os estágios possíveis de agressão dentro do relacionamento. Na maioria das vezes, pensam que a agressão vem em forma física, mas a violência física é o último estágio. Até essas agressões chegarem na violência física, esse relacionamento destrói muito o psicológico da pessoa, a autoestima, a perspectiva de vida e de crença, então o psicológico abala bastante e nós estamos tendo que fazer muitos encaminhamentos para o psiquiatra para ter um suporte melhor”, salienta.

O atendimento prestado pelo no órgão também abrange a família da vítima. “O atendimento é principalmente para as mulheres, mas se nós percebermos a necessidade do restante da família, damos o auxílio e o encaminhamento adequado. O dano psicológico causado na mãe pode ser causado na criança, porque ela cresce em um ambiente hostil. Então ela pode crescer e desenvolver os mesmos traumas que a mãe. Desenvolver ansiedade, síndrome do pânico, algumas vezes, por conta de gritos constantes, a criança tem medo de barulho e então atrapalha até o sono. Porque as crianças algumas vezes não sabem manifestar através da fala sobre o que está acontecendo, mas ela manifesta através do comportamento. E por vezes é necessário encaminhar a criança junto”, ressalta.

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Dados: Centro de Referência de Atendimento

à Mulher de Frutal. Arte: Ana Paula Lima.



“Não importa quanto tempo passe, isso sempre vai ser uma ferida para mim”
Luisa*, 23 anos

“A gente se conheceu quando eu tinha 17 anos. Nós morávamos em uma cidade pequena, nos conhecemos em uma festa e começamos a nos envolver. Ele era extremamente romântico, muito afetuoso e cuidadoso, do tipo que recitava poemas, puxava a cadeira para mim. Eu achava incrível, nunca tinha visto aquilo em alguém. Quando eu o conheci, estava passando por uma fase muito depressiva, precisando de ajuda profissional, já tinha passado por psiquiatra e estava tomando medicação. Estava com o emocional muito abalado e nessa fase com ele me ajudou muito. Eu relacionei a minha melhora a ele e isso acabou criando um contexto de dependência emocional. Meu médico retirou minha medicação por um tempo e, nesse período, comecei a perceber indícios de traições do meu namorado. Ele me dizia que aquilo era falta dos remédios, dizia que eram coisas da minha cabeça e começou a me fazer questionar a minha própria sanidade mental. Ele começou a me fazer questionar todas as minhas opiniões, minha personalidade e me diminuía em tudo. Essa violência não foi do dia para a noite, foi um processo. Eu tinha dificuldades de estabelecer limites e fui deixando-o me tratar cada vez pior, até que chegou a ponto de me xingar e ir para um nível muito problemático. Me lembro que fomos a uma festa, eu bebi e acabei dormindo bêbada. Quando acordei, ele estava transando comigo. Eu sabia que aquilo era um estupro, mas por algum motivo, tentei justifica e achando que ele não sabia que aquilo era um estupro, conversei com ele não deu importância nenhuma para aquilo. Continuamos namorando e esse ciclo de às vezes ser incrível e às vezes ser terrível também continuou. Ele me proibia de várias coisas: de falar com as minhas amigas, de usar perfume ou de não usar soutien. Organizei uma festa de aniversário para ele, gastei todo meu dinheiro, convidei uns amigos dele e tentamos achar um jeito de levá-lo até lá. Ele disse que odiou tudo, brigou comigo, me humilhou na frente das pessoas e me pediu para ir para o quarto e não estragar a festa dele, sendo que eu que havia organizado tudo. Eu fiquei muito mal, bebi além do que devia e fui dormir. Ele ficou até amanhecer na festa e quando todo mundo foi embora ele foi até o quarto onde eu estava dormindo. Eu vi um flash, foi quando eu percebi que ele estava me estuprando de novo enquanto dormia, mas dessa vez ele ainda tentou gravar. Eu ainda tentei conversar com ele para tentar resolver, como se aquilo fosse algo resolvível, mas meu subconsciente já estava muito desgastado, já estava passando por uma sequência de violência psicológica e ainda começaram as violências sexuais. Chegou ao ponto que consegui terminar. Quando terminamos, fiquei uns dias em outra cidade. Quando voltei, ele me mandou mensagens dizendo que tinha sido expulso de casa e precisava de alguém para conversar. Eu cedi e fui até lá para conversarmos, já que ele não quis conversar por telefone. Era uma meia noite, ele começou a desabafar, contou toda uma história fictícia, tentei aconselhá-lo, mas quando falei que iria ir embora ele se transformou. Ele começou a dizer não ia me deixar ir embora, mas eu não dei muita credibilidade e tentei ir, ele grudou no meu braço e me bateu contra a parede e começou a sessão de tortura. Eu tentava gritar, ele me sufocava e falava que ia me apagar se eu gritasse. Ele começou a fazer ameaças e ficou por um bom tempo com essa tortura psicológica. Naquele momento eu me senti muito frágil, me senti nas mãos deles. Eu cheguei a pedir para ele fazer o que quisesse, que se fosse para me matar que fizesse aquilo logo, ele então mudou de postura e se colocou como vítima e falava o quanto me amava. Entrei no jogo dele e, com muito custo, consegui sair. Corri e ele foi atrás, me acompanhou até em casa. Mesmo com vergonha, contei para a minha família e decidi denunciar. Só depois da denúncia e da medida protetiva, ele parou de me procurar. Ser mulher é se sentir de mãos atadas constantemente, toda a carga de um relacionamento abusivo fica para a vítima. Não importa quanto tempo passe, isso sempre vai ser uma ferida para mim.”

(*) nome fictício.


O outro lado


Outra iniciativa na cidade de Frutal é o projeto Acolher (@projetoacolher_frutal), que trabalha com os agressores. A iniciativa da psicóloga Ana Carla Ferreira e pela assessora jurídica Nadia Bosnich, funcionárias do Fórum da cidade. Inicialmente, em 2020, os atendimentos eram prestados a vítimas e agressores, mas em 2022 o foco passou a ser exclusivo aos agressores. “O Acolher é único e exclusivamente para atendimento de situações de violência doméstica. Em 2020, quando foi planejado, a intenção era que a gente pudesse dar celeridade aos casos de violência, tanto no setor dos processos e das medidas protetivas, quanto a um acolhimento humanizado. No lado jurídico existe uma vertente da justiça restaurativa, que em tese tem a função de restaurar e não só de punir. Então sempre trabalhamos para tentar restaurar laços ou melhorar a qualidade de vida tanto da vítima quanto de todo contexto familiar”, explica a psicóloga.


O projeto atende a comarca que abrange as cidades de Planura, Fronteira, Comendador Gomes e Frutal. As duas profissionais atendiam a 300 medidas protetivas, acolhendo 600 pessoas em média por mês. “Era inviável para duas pessoas e achamos melhor unificar. Como as vítimas de violência já têm lugares específicos dentro da rede municipal de proteção, da rede assistencial e todas as comarcas já tinham um local de acolhimento, achamos por bem e, até uma maneira mais eficaz, em trabalhar com os agressores”, explica.


O projeto trabalha com três vertentes: o acolhimento do agressor, a divulgação e a prevenção – por meio de visitas às escolas e ações de capacitação de rede e divulgação de informações sobre a lei Maria da Penha ou as questões de violência doméstica familiar – e avaliação dos pedidos de revogação dos pedidos de medida protetiva.


Quando há uma denúncia de violência e é emitida uma medida protetiva, ambas as partes são intimadas e o projeto também é notificado. “Nós encaminhamos a vítima para os setores destinados (como o CRAM) e acolhemos o agressor”, explica a psicóloga, evidenciando a importância de realizar atendimentos humanizados para diminuir não somente os novos casos, mas também as reincidências. “Ele (o agressor) vai passar pelo acolhimento presencial, será orientado, vamos ouvir a sua versão sobre os fatos e, se tiver casos de reincidência, ele será inserido em um grupo de acolhimento com outros agressores. Vamos começar as reuniões quinzenais no final de junho com agressores reincidentes na lei Maria da Penha. E a tendência é que tenhamos cada vez mais grupos rotativos desses agressores, porque acredito que só um trabalho mais efetivo vai coibir essas ações”, analisa.


Ana Carla acredita que trabalhar com os agressores é uma das formas de frear a violência contra a mulher. “O combate à violência doméstica não é um trabalho da mulher, não são as mulheres que vão parar e frear a violência, as únicas pessoas que podem parar e frear a violência são os homens. Temos que fazer com que eles entendam que essa cultura do machismo precisa ser quebrada com o tempo”.


É necessário que a população de um modo geral saiba e combata a violência contra a mulher. Em vídeo a assistente social do CRAM, Miralda Soares, fala sobre a importância das divulgações do trabalho de combate à violência contra a mulher.





 
 
 

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